"Só quero que me deixem dormir na minha casa"
Há já alguns anos que os ruídos nocturnos em várias localidades
do concelho da Mealhada, devido às horas tardias
a que os estabelecimentos comerciais encerram, são alvo de imensas críticas por
parte dos moradores que habitam junto a esses estabelecimentos. Nos últimos
tempos, queixas por parte de vizinhos, que chegam a estar em “guerra” com os
proprietários dos estabelecimentos, têm sido uma constante. Os queixosos culpam
os proprietários dos estabelecimentos e estes, por sua vez, culpam as regras
internas e a actuação da Câmara Municipal da Mealhada. Os agentes da Guarda
Nacional Republicana da Mealhada são também visados em toda esta situação,
chegam a fazer viagens infrutíferas por todo o concelho, devido a falsos
alarmes que são fruto de chamadas telefónicas de denúncia, efectuadas durante a
madrugada. A repórter do Jornal da Mealhada falou com habitantes e proprietários
de estabelecimentos nocturnos das localidades de Mealhada, Sernadelo, Luso e
Casal Comba – locais onde as queixas, ultimamente, têm sido mais frequentes.
“Vivo nesta casa há trinta anos”, relatou um dos vizinhos,
de um café na freguesia de Casal Comba, que se considera prejudicado que
prosseguiu: “Há cerca de uma dúzia de anos construíram, aqui próximo, um café.
Nunca houve problemas absolutamente nenhuns, nem de convivência, nem de ruídos.
Entretanto, em Outubro passado, o café mudou de gerência e os novos
responsáveis promoveram uma mudança radical das minhas condições de vida. Para
além do barulho perturbador dos clientes a sair do café a horas tardias, ainda
promovem, periodicamente, festas que tornam o meu descanso, e o das pessoas que
estão em minha casa, completamente impossível. Imagine-se o que é ter música em
alto volume até às cinco da madrugada”, prosseguiu, “Não estou preocupado com o
que fazem lá dentro. Só quero que me deixem dormir, tranquilamente, na minha
casa!”.
Contactado pelo Jornal da Mealhada, outro morador, vizinho
de um outro estabelecimento em Sernadelo, declarou: “Trata-se de um
estabelecimento que foi, recentemente, construído para ser um café, para venda
de bebidas e produtos alimentares. No entanto, regularmente, os proprietários
insistem em transformá-lo numa discoteca. Junto da Câmara devem pedir licença
para fazer karaoke, mas a verdade é que a música que é ouvida é de discoteca. O
local não tem insonorização suficiente e o nosso descanso é impossível. Quando
alguém abre a porta do estabelecimento, então aí é como se tivesse a cama no
meio de uma discoteca. É uma loucura!”.
“Se a ASAE é tão rigorosa com tantas coisas, como é possível
que permita que bares e snack-bares, vocacionados para um tipo de comércio, de
repente, possam
fazer passar-se por discotecas? Os próprios donos de
discotecas deveriam sentir-se revoltados com a situação. Esses bares não estão
licenciados nem reúnem condições para fazer essas festas que a Câmara diz serem
ocasionais, mas sempre gostava de saber o que aconteceria se estivessem
localizados à porta dos senhores vereadores”, prossegue um dos queixosos de
falta de condições para fruição do seu descanso.
O rol das queixas não termina e relativamente a outro
estabelecimento foi dito: “O barulho torna-se insuportável. Chamamos os agentes
da GNR, mas não sei o que se passa, se alguém avisa o proprietário do bar, mas
a verdade é que o som fica logo mais baixo. Desta forma, os agentes quando cá
chegam, nunca são confrontados com os barulhos e torna-se impossível apresentar
queixa”.
Os proprietários dos
estabelecimentos que contactámos, confrontados com as queixas, defenderam-se:
“Nunca paguei uma única multa porque a GNR vem cá e não consta que haja
barulho”. “As pessoas antes de se queixarem deviam pensar que há famílias
inteiras que dependem destes negócios”, afirma um dos proprietários. “Há,
também, concorrência desleal, existem sítios sem condições nenhumas, que não
estão dentro da lei, e que estão sempre a fazer festas. Até garagens servem de
cafés e, desta forma, prejudicam os estabelecimentos que pagam os impostos e
que trabalham dentro da legalidade”, lamenta um dos proprietários. Outro
acrescenta: “A solução poderia ser a própria Câmara arranjar uma zona só para
se concentrarem os bares de todo o concelho. Acabavam-se os problemas dos
gerentes dos bares, mas também os dos moradores”.
A Câmara Municipal da Mealhada, segundo afirmou a
vice-presidente, Filomena Pinheiro, está ao corrente da situação. Confirmou
que, na realidade, já houve lugar a coimas infligidas aos proprietários de
alguns estabelecimentos nocturnos por não cumpriram as leis do Regulamento
Geral do Ruído. “Deram entrada na Câmara alguns autos de contra-ordenação
passados pela GNR, que mereceram o devido tratamento”, garantiu Filomena Pinheiro.
“O problema é que os estabelecimentos promovem festas, como
por exemplo, karaokes, que provocam muito barulho e que duram até fora das
horas permitidas do encerramento dos estabelecimentos. Depois, quando encerram,
os clientes veêm para a rua e ainda fazem mais barulho, ouvem-se vozes altas e
barulhos dos carros a trabalhar. Já tive que me aborrecer e chamar os agentes
da GNR, que depois encaminham a situação para a Câmara, mas que de nada serve.
Não percebo bem estas leis”, lamentou um dos moradores contactados. Paulo
Serra, capitão do destacamento da GNR de Anadia, explicou: “O que verificamos é
que muitas vezes, o ruído não é proveniente do interior, mas sim do exterior
dos estabelecimentos e a lei portuguesa, a este respeito, não é muito clara no
que toca a mandar calar uma pessoa quando esta se encontra na rua”.
Apesar do incómodo que as festas realizadas nos
estabelecimentos nocturnos causam nos moradores das habitações, são passadas
licenças, por parte da Câmara Municipal da Mealhada, que permitem que as tais
festas, acontecimentos ditos ocasionais, se possam realizar, contudo, é também
esta entidade municipal que se responsabiliza por aplicar as respectivas
coimas. “Quando faço uma festa, no meu estabelecimento, tenho de adquirir duas
licenças, uma de ruídos e outra de espectáculo, e pago cerca de setenta euros
por estas licenças, de cada vez. Depois, o mais engraçado, é que também é a
própria a Câmara que estabelece as coimas das multas. Ou a Câmara passa as
licenças e se responsabiliza por isso, ou então, é preferível não haver festas
para ninguém”, lamenta um dos proprietários com quem falámos. “No alvará que a
Câmara passa, que permite que nós possamos realizar festas, há uma nota que diz
que temos que preservar a qualidade de vida das pessoas que vivem à volta. É
uma forma subtil de a Câmara salvaguardar sempre a sua parte e ficar bem com
todos”, acrescenta outro proprietário. “Todas as licenças passadas têm como
condição o cumprimento do Regulamento Geral do Ruído. Há, no entanto, estabelecimentos
licenciados há muitos anos, à luz de leis diferentes, com diferentes graus de
exigência. E, refira-se também, que estamos a falar de licenças acidentais,
para acontecimentos esporádicos”, explicou Filomena Pinheiro. “Mas para que
servem essas licenças que pagamos? Pagamos impostos, pagamos uma renda à Câmara
pelo espaço e depois ainda pagamos licenças que podem resultar em coimas”,
questiona um dos proprietários.
“Vivo num apartamento e na urbanização onde estou
inserido já quiseram que assinasse uma petição para terminar
com estes barulhos intensos vindos de um estabelecimento que realiza quase
todos os fins-de-semana festas nocturnas. Não sei o que se seguiu a isso”,
afirmou um morador de um apartamento na Mealhada. O proprietário do estabelecimento
em causa defende-se: “Por achar que o meu estabelecimento, que fica junto a
vários lotes de apartamentos, poderia incomodar os vários moradores que ali
residem, um dia, fiz passar uma petição para ter noção do que realmente os
incomodava. Foram muito poucos os que assinaram e aqueles que o fizeram, por
mais estranho que pareça, são os que vivem na rua contrária ao estabelecimento.
Se realmente o barulho os incómoda deveriam assumi-lo para que se possa
arranjar uma solução”.
Há, no entanto, diferentes exemplos de abordagem dos
queixosos: “Manifestei-me, em primeiro lugar, aos gerentes do estabelecimento,
comunicando-lhes o meu incómodo. Nem a decência tiveram de me responder.
Senti-me obrigado a, nas situações seguintes, fazer queixa à GNR e queixar-me por
escrito à Câmara Municipal. Estabeleci, até, contacto directo com responsáveis
municipais. No entanto nada mudou. As licenças continuam a ser passadas como se
nunca me tivesse queixado”.
Se os moradores se queixam dos proprietários dos
estabelecimentos, há também empresários que se queixam dos moradores. Acusações
de promoverem autênticas “birras” diárias que, segundo dizem, provocam
mal-estar não só nos clientes, mas também nos agentes da GNR, que chegam a ter
que se deslocar numa só noite, duas e três vezes ao mesmo local, que, na maior
parte das vezes, e segundo alguns proprietários, resultam em falsos alarmes.
“Não fica bem ao estabelecimento ter sempre a presença de agentes da GNR, cada
vez que há uma festa e o ambiente até está agradável. Os clientes não se sentem
bem com isso, obviamente”, explica um dos proprietários, que também lamenta:
“Em vez de ajudarem a cativar as pessoas para se divertirem no concelho e não
terem que ir para Coimbra ou Aveiro, fazem tudo ao contrário e espantam-nos”.
“No meu estabelecimento a situação foi mais longe e até
tenho na minha posse relatórios da GNR, que provam que as centenas de chamadas
telefónicas que foram feitas, a fazerem queixas dos barulhos do meu
estabelecimento, são falsos alarmes e numa delas os agentes da GNR até estavam
no local”, desabafa um outro gerente de um estabelecimento.
Paulo Serra considera: “Realmente, é muito aborrecido sermos
chamados com alguma frequência ao mesmo local, na mesma noite, mas também não
podemos fazer nada porque se somos solicitados, temos que nos ir certificar se
de facto os ruídos estão acontecer”. E perante falsos alarmes, perguntámos. “A
solução é mesmo vir embora”, afirma o capitão da GNR.
Quais são os limites que os estabelecimentos comerciais não
devem ultrapassar para que não lhes seja passada coima? “São os estabelecidos
na lei, cabendo a fiscalização à GNR”, respondeu Filomena Pinheiro. “Perante
uma chamada de um queixoso e se o ruído for comprovado de facto, o que podemos
fazer é passar um auto de contra-ordenação que remetemos para a Câmara
Municipal. Nestes casos, apenas podemos dar a conhecer às entidades competentes
e responsáveis pelas coimas”, explicou o capitão Paulo Serra. Como se comprova,
de facto, a existência de ruído, foi resposta que não conseguimos apurar nem da
parte da Cãmara, nem da parte da GNR.
“Penso que não se trata de um problema alarmante, contudo, é
no centro da cidade da Mealhada que o assunto se torna mais visível e mais
preocupante”, garantiu o capitão do destacamento da GNR de Anadia.
Ouvidos os argumentos dos moradores, as respostas dos
proprietários, a avaliação da GNR e o modo de actuação da Câmara Municipal da
Mealhada parece haver uma garantia: Não estará para breve a solução dos muitos
conflitos resultantes do licenciamento de festas e de animação nocturna. Os
proprietários, segundo pudemos apurar, não estão dispostos a abdicar do retorno
do seu investimento. Da parte dos moradores queixosos também não parece haver
lugar a tréguas: “Tenho mesmo de fazer algo para resolver a situação. Não estou
a pensar desfazer-me da minha habitação, mas também não vou abdicar do meu
descanso! Farei tudo o que estiver ao meu alcance para dar continuidade ao
prazer que tinha de viver na casa que construí”.
Texto de Mónica Sofia Lopes
Fotografia de Ricardo Almeida
Reportagem publicada na edição impressa do Jornal da Mealhada de 23 de abril de 2008.
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